terça-feira, 31 de agosto de 2010

Clarice Lispector

Já escondi um AMOR com medo de perdê-lo, já perdi um AMOR por escondê-lo.
Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos.
Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso.
Já passei noites chorando até pegar no sono, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem.
Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram.
Já passei horas na frente do espelho tentando descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer sumir.
Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi.
Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto.
Já sorri chorando lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir.
Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam.
Já tive crises de riso quando não podia.
Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva.
Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse.
Já gritei quando deveria calar, já calei quando deveria gritar.
Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros.
Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros.
Já contei piadas e mais piadas sem graça, apenas para ver um amigo feliz.
Já inventei histórias com final feliz para dar esperança a quem precisava.
Já sonhei demais, ao ponto de confundir com a realidade…
Já tive medo do escuro, hoje no escuro "me acho, me agacho, fico ali".
Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais.
Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria.
Já corri atrás de um carro, por ele levar embora, quem eu amava.
Já chamei pela mamãe no meio da noite fugindo de um pesadelo. Mas ela não apareceu e foi um pesadelo maior ainda.
Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram… Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim.
Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.

Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer:
– E daí? EU ADORO VOAR!

Clarice Lispector

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O garoto que fugia da filosofia

Quando eu era criança me veio o temor de eu não enxergar a mesma cor, que eu denominava verde, que a cor que outros denominavam também de verde. Dávamos o adjetivo “ verde” a um objeto que tinha a cor verde. Concordávamos: aquilo que apontávamos era verde. Mas, será que o “meu verde” era o mesmo que o “verde do outro”? Eu era um filósofo e não sabia. Eu cresci um pouco e achei que perguntas desse tipo não eram sérias, e que era coisa de criança. Quis largar a filosofia, e isso antes mesmo de chegar à adolescência.

Fiquei contente em perceber que a pergunta sobre o verde havia ficado no passado. Estava livre da filosofia! Ah, que bom! Nada de perguntas malucas, que poderiam me atrapalhar não só no esporte, mas também no namoro. Um filósofo não joga bola e ninguém quer namorar um filósofo – assim diziam e assim acreditei. Além disso, perguntas daquele tipo, que até sobreviveram comigo no tempo da escola primária, não tinham trazido pouco dissabor para minha vida em sala de aula. Ah! Livre delas, terminado o tempo da filosofia, eu poderia, enfim, ser normal!

Jogando bola e namorando, tudo iria bem. Os problemas existiam, mas eram outros. No esporte, a questão era a da estratégia no basquetebol. Como fazer o adversário pensar uma coisa que não se iria fazer e, assim, levá-lo a deixar que fosse feito o que eu realmente pretendia. Finta – eis aí o nome da coisa. No namoro, a questão às vezes era parecida, quase como a do basquetebol: as meninas da mesma idade, já bem mais maduras, queriam os moços, os mais velhos, e quando vinham para namorar com garotos, também fintavam: faziam que estavam apaixonadas e nós acreditávamos, mas não estavam. Nesse caso, não era finta o nome que dávamos, era traição. Como nos mordíamos com isso!

Um dia voltei à biblioteca do meu avô, que eu havia abandonado na pré-adolescência. Quando vi estava com um livro de filosofia nas mãos. Ele falava de ética e moral, e eis que os problemas da finta e da traição estavam lá. Enganar, dissimular, trair, divulgar ideologia etc. – tudo lá. Eu pensava ter me livrado da filosofia! Mas ela estava novamente comigo.

Resolvi, então, enfiar a cabeça nos estudos das “matérias principais” Chega de só namorar, só jogar bola e, é claro, chega de resvalar em filosofia. Uma vida normal – eis o que eu queria. Uma vida normal implicava em ter uma profissão. Então, deveria passar no vestibular, fazer universidade e ganhar o chamado mercado de trabalho.

Comecei a estudar matemática para valer. Mas, rapidamente, as coisas ficaram complicadas. Eu havia aprendido bem o Teorema de Pitágoras. E já o havia aplicado à diagonal de um quadrado de lado unitário. Mas, um pouco mais velho, essa operação fez novo sentido para mim. O resultado: raiz quadrada de dois. Ora, mas essa raiz não dá um número que eu possa determinar e, no entanto, estou vendo ali que a diagonal tem começo e fim, tem de ter um número finito determinável. O cálculo mostra uma coisa, a visão mostra outro. Como? Quem estaria certo: o intelecto que aplicou o Teorema ou os olhos que não concordam com o resultado da aplicação? Não foi nem preciso eu voltar à biblioteca do meu avô para ver que estava eu, novamente, envolto com algo que não era só da ordem da matemática, mas da filosofia.

Não podendo vencer o inimigo, tratei de me unir a ele. Aceitei a filosofia como a companheira que iria fazer parte da minha vida. Mas, quando vi, ela era toda a minha vida. Eu já não era nada a não ser filósofo. E eis que me peguei com todos os problemas que citei antes, em níveis diferentes. E então vi que isso dependia de conversa, debate, vida pública, fala com outros. E que isso era possível em um lugar com liberdade. Para ser filósofo, para ser eu mesmo, precisava de liberdade. E aí fui eu pela vida, filosofando e buscando a liberdade. Buscando a liberdade e filosofando.

Ah, o basquete? O tempo tornou as pernas duras. Ah, as mulheres? Gostei bastante e ainda gosto, obrigado! Tenho a melhor delas.

Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Namoro Gramatical

Recebi um e-mail do qual desejo compartilhar com vocês o seu conteúdo...


Redação feita por uma aluna do curso de Letras, da UFPE Universidade Federal de Pernambuco (Recife), que venceu um concurso interno promovido pelo professor titular da cadeira de Gramática Portuguesa.


Redação:

Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador. Um substantivo masculino, com um aspecto plural, com alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. E o artigo era bem definido, feminino, singular: era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal.

Era ingênua, silábica, um pouco átona, até ao contrário dele: um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanáticos por leituras e filmes ortográficos. O substantivo gostou dessa situação: os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir. E sem perder essa oportunidade, começou a se insinuar, a perguntar, a conversar.

O artigo feminino deixou as reticências de lado, e permitiu esse pequeno índice. De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro: ótimo, pensou o substantivo, mais um bom motivo para provocar alguns sinônimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeça a se movimentar: só que em vez de descer, sobe e pára justamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela em seu aposto.

Ligou o fonema, e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, bem suave e gostosa. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram conversando, sentados num vocativo, quando ele começou outra vez a se insinuar.

Ela foi deixando, ele foi usando seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo, todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo direto.

Começaram a se aproximar, ela tremendo de vocabulário, e ele sentindo seu ditongo crescente: se abraçaram, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois. Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula; ele não perdeu o ritmo e sugeriu uma ou outra soletrada em seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, estava totalmente oxítona às vontades dele, e foram para o comum de dois gêneros.

Ela totalmente voz passiva, ele voz ativa. Entre beijos, carícias, parônimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais: ficaram uns minutos nessa próclise, e ele, com todo o seu predicativo do objeto, ia tomando conta.

Estavam na posição de primeira e segunda pessoa do singular, ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular. Nisso a porta abriu repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo, e entrou dando conjunções e adjetivos nos dois, que se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tônica, ou melhor, subtônica, o verbo auxiliar diminuiu seus advérbios e declarou o seu particípio na história.

Os dois se olharam, e viram que isso era melhor do que uma metáfora por todo o edifício. O verbo auxiliar se entusiasmou e mostrou o seu adjunto adnominal. Que loucura, minha gente. Aquilo não era nem comparativo: era um superlativo absoluto. Foi se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado para seus objetos. Foi chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo, propondo claramente uma mesóclise-a-trois. Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria ao gerúndio do substantivo, e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.

O substantivo, vendo que poderia se transformar num artigo indefinido depois dessa, pensando em seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história: agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, jogou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.